Escrito por Anna Hirsch Burg - Psicanalista
Segunda-feira decidiu que começaria uma dieta. Três dias depois, na madrugada, lá estava, mergulhada na geladeira. No dia seguinte resolveu que levaria a dieta muito a sério e aproveitando o fato de que a boca ficaria fechada decidiu parar definitivamente de fumar. Aguentou até sexta, quando fumou dois maços de cigarro para compensar os dias de abstinência. Com a entrada do final de semana ,comeu, bebeu e fumou para além do convencional, visto que a segunda-feira, dia do começo da dieta, estava chegando.
Falta de força de vontade? Não para a Psicanálise, que vê na insistência da repetição dos erros rastros do inconsciente que nos domina.
O fenômeno da repetição não é exclusividade psíquica, podemos observar repetições em praticamente tudo que nos rodeia. Repetição das quatro estações, das fases da lua e de tantos outros fenômenos da natureza. O corpo repete do nascimento à morte movimentos como dormir, respirar, comer. O psiquismo repete desde a mais tenra infância padrões de satisfação.
Existe um fato inegável que acontece com a maioria das pessoas: repetem atitudes que vão do nada a lugar nenhum, como o caso citado no início desse artigo, ou seja, apesar de decidirem racionalmente que não irão repetir algo que consideram errado, repetem e repetem...
Afinal, por que repetimos? Qual o objeto da repetição? Para a Psicanálise somos produto de todos os acontecimentos ocorridos no passado. Somos nosso inconsciente atualizado, ou seja, o inconsciente vem à tona no cotidiano, sobretudo por meio de atos e pensamentos repetitivos.
Diferente do que as pessoas imaginam, o inconsciente se revela como força soberana por trás de todas as nossas escolhas: amorosas, profissionais, a maneira como nos relacionamos com o outro, com o sucesso, o fracasso, a sexualidade e maneira de lidar com o corpo. Todas essas escolhas decisivas são feitas à nossa revelia, atualizam o passado.
Nós repetimos uma maneira de amar e repetimos também uma maneira de nos separar.
Vale destacar que existem repetições saudáveis e patológicas. Nas repetições patológicas, podemos observar sequência de rompimentos amorosos incompreensíveis, comer compulsivamente, anorexia, drogadição, distúrbios obsessivo-compulsivos, compulsão sexual, manifestarem-se entre outras, como repetições patológicas que remontam traumas infantis.
A repetição compulsiva leva numerosas pessoas a buscar uma terapia. A maioria se vê repetindo sem controle atitudes que parecem estranhas para si mesmas e buscam uma resposta.
Existem também as repetições “saudáveis” que dão uma noção de quem somos, ou seja, a maneira de lidar com o dinheiro, com o amor, trabalho, amigos e filhos, de cuidar do corpo e da saúde. A repetição traz consigo um traço de identidade, isto é, sem os processo de repetição a pessoa tende a não se reconhecer, por isso a mudança mostra-se tão temida.
As queixas que escuto com mais frequência no consultório tratam de repetições dos mais variados temas como, por exemplo, pessoas que sempre se apaixonam por quem não as ama e quem as ama não lhes interessa. Outros acreditam que sempre têm uma posição submissa e servil lá onde acreditam que o ideal seria mostrar uma posição de liderança, alguns não conseguem deixar de ser autoritários onde gostariam de ser mais flexíveis e condescendentes. Mães que sentem que sufocam seus filhos e mães ausentes. Pessoas excessivamente ciumentas e possessivas. Pessoas que sentem falta de desejo sexual quando amam e desejo excessivo lá onde não há envolvimento afetivo. Muitos querem mudar hábitos alimentares. A lista é grande.
Acredito que a maioria das repetições traz em seu bojo uma maneira de fixar uma única posição perante a si e perante o outro o que dá uma sensação de atolamento, estagnação.
Qual o trabalho de um psicanalista frente a tudo que citei?
Freud apontou um caminho: “Aquele que não conhece seu passado está condenado a vê-lo retornar sob a forma de comportamentos impulsivos ou de um fracasso”.
Trocar a repetição por uma memória é objetivo do trabalho numa abordagem psicanalítica. Não se trata de uma simples rememoração, nem é uma experiência súbita, mas sessão a sessão o trabalho é feito no sentido de uma construção de um novo olhar sobre si mesmo, um recontar a própria história.
O tratamento consiste no uso da palavra: tanto a fala do analisando quanto a do analista incidem sobre os afetos silenciados, mas indomados, que uma vez verbalizados perdem consistência.
O trabalho analítico se desenha de forma sutil e delicada como um bordado a quatro mãos onde analista e analisando esboçam através de luz e sombra pontes entre passado e futuro.
O rememorar produz uma desarticulação na amarração da série repetitiva. Onde havia uma âncora da mera repetição, afrouxam-se os nós abrindo brechas para lidar com o imponderável, a surpresa, o criativo, ou seja, para o movimento da vida.